terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Contos 2009

Contos
1° Lugar
Maunder Minimum
Eduardo de Paula Nascimento
Franca/SP


Maunder Minimum – Ameaça sub zero

Roger era um garoto carioca cujos pais sempre incentivaram o dom científico. A mãe era psicóloga e o pai executivo. Não eram muito carinhosos, mas eram extremamente presentes.
Quando adolescente Roger navegava pela internet em uma busca desenfreada por conhecimento científico. Durante uma das noites em que estava conectado, sentiu um leve aumento da luminosidade da tela de seu computador e, em seguida, uma pane elétrica generalizada. Acreditou ser momentânea e regional, porém assustou-se com a vastidão negra que avistou quando aproximou-se da janela de seu apartamento. Foram aproximadamente cinco horas de black out completo até que todos os sistemas se restabelecessem.
A explicação oficial ocorreu somente na tarde seguinte quando toda a mídia retransmitiu uma nota oficial da NASA comunicando o registro da maior ejeção de massa coronal - EMC solar que a agência havia registrado desde o início das medições.
Fascinado pela demonstração de poder do astro rei, navegou por vários dias procurando informações sobre a estrela central de nosso sistema planetário.
_ Sabia, pai, que daqui a uns cinco bilhões de anos o sol vai ter consumido todo seu hidrogênio e todos na terra morrerão?
_ E o que nós temos a ver com isso filho?
_ Todos podem morrer, oras.
_ E você está achando que vai viver cinco bilhões de anos pra ter esta certeza? _ Acho que é melhor você se preocupar mais com seus deveres de casa do que com fantasias Roger. Suas notas de português e sociologia não estão nada boas. Alertava sua mãe, aproveitando as oportunidades para induzir equilíbrio ao filho.
Roger direcionou seus estudos às ciências exatas e foi o segundo colocado no vestibular da Universidade de São Paulo para onde mudou-se, ocupando um dos apartamentos internos do campus da universidade. Na véspera do início das aulas, quando entrou pela primeira vez em seu quarto no campus, assustou-se ao se deparar com uma cena no mínimo estranha. Um outro jovem encontrava-se na janela do quarto com os cotovelos no parapeito segurando um binóculo. Seria uma cena normal se este “ser” não estivesse trajando apenas uma camiseta preta, estando seu traseiro, branco como os altos cirros do outono carioca, totalmente à mostra.
Sentou-se na cama e correu os olhos pelo quarto.
_ Minha mãe deveria ver isso. Pensou consigo. Isso sim é uma bagunça.
O lado esquerdo do quarto, onde o colega havia se alojado, era uma espécie de mistura de rock psicodélico e “Star Treck”. Alguns menos informados e que não conheciam os antigos seriados ou as ultrapassadas bandas de rock diriam que Ozzy Osbourne era um dos tripulantes da Enterprise, dada a mistura alucinante de gravuras fixadas na parede.
Porém, por traz de toda aquela bagunça, algo chamou a atenção de Roger. Havia um notebook, exibindo imagens com resolução até então nunca vista por ele. Centralizava uma estrela que, sem dúvidas, não era o nosso sol. A tonalidade avermelhada diferenciava totalmente aquele astro magnífico.
A imagem parecia seduzir os olhos Roger como os cantos das sereias aos ouvidos de Odisseu. Ele simplesmente não conseguia desviar os olhos da tela.
_ É Aldebaran, on-line. Disse o colega.
_ Quem? Perguntou Roger, saindo de seu transe.
_ Aldebaran! Repetiu. A gigante vermelha de Taurus. Nunca ouviu falar?
_ Não, só conheço um pouco do nosso sol mesmo.
_ Pois então, Aldebaran é o nosso sol no futuro. Neste momento deixou a janela e virou-se para dentro do quarto. Você deve estar pensando que sou maluco certo? Todos pensam. O último colega que ocupou esta cama ai chegou a correr de mim no primeiro dia em que entrou neste quarto. Não sei se foi pela bagunça do quarto ou pelo reflexo da minha bunda, mas até que você suportou bem o primeiro impacto. E, dizendo isso, pegou a calça que estava na cabeceira da cama e começou a vesti-la.
De fato Roger não havia se incomodado tanto assim com a excentricidade do colega. Talvez o equilíbrio tão valorizado por sua mãe o tivesse tornado mais tolerante.
_ Mas ainda não me apresentei. Sou Alex Baptista, quarto semestre de astronomia.
_ Sou Roger Born, seu humilde calouro.
_ Gostei de você, moleque. Mas não gostei do jeito que você encarou minha amante na tela do micro. Toma cuidado porque sou ciumento hein!
_ Fica “sussa”! Meu negócio é o sol mesmo, mas nem por isso posso deixar de comentar que sua amiga ai é bem atraente. E riram juntos.
Era realmente o começo de uma amizade franca e duradoura entre o equilíbrio e a excentricidade, entre a benevolência e a carência, entre o sol e Aldebaran, entre Roger e Alex.
O primeiro dia de aula Roger surpreendeu-se com a quantidade de teoria apresentada. Marcou-lhe também o encontro inusitado com o primeiro colocado no vestibular daquela turma. Era Igor Meirelles, um lourinho sardento, de ascendência germânica, possuidor de uma necessidade tão gritante de auto-afirmação que parecia sair-lhe pelos poros e foi realmente do nada que esta criatura apareceu à frente de Roger:
_ Então foi você o segundo colocado? Perguntou.
_ Sim, muito prazer, Roger Born, seu nome é?
_ Igor Meirelles, fui o primeiro colocado no vestibular. Acrescentava-se agora uma boa pitada de arrogância naquela voz.
_ Parabéns, de fato é um mérito. Ainda mais para um vestibular tão concorrido. Mas, Igor, você vai ter que me desculpar, um amigo do segundo ano está me aguardando para me apresentar ao bandejão do restaurante universitário.
_ Então já fez amizades com o pessoal do segundo ano?
_ Na verdade é meu colega de quarto. Alex Baptista.
_ Já ouvi falar dele, é o que o pessoal chama de louco, não é?
_ Bem, ele pode até ser meio excêntrico, mas está longe de ser louco.
_ Dizem que ele não se relaciona com os outros colegas e que nem mostra suas notas. Talvez tenha vergonha do fracasso. Todos comentam ainda que ninguém consegue morar mais de uma semana com ele. Isso não te dá medo?
_ De forma alguma, pelo menos até agora estamos nos dando muito bem.
_ Bom, diga-me com quem tu andas... Sabe, eu esperava mais de você.
_ Bem, Igor, peço realmente desculpas, mas tenho que ir mesmo. Virou as costas e saiu, deixando Igor perplexo e estático.
Passaram-se quatro meses e o primeiro semestre já estava chegando ao final. A semana de exames se aproximava e Roger continuava dividindo quarto com Alex que se tornou um amigo leal. Era como se dividissem fascínios. Alex pelas gigantes vermelhas e Roger pelo sol.
Todavia, se por um lado as imagens do cosmo o incentivavam, a teoria entediava Roger. Não entendia o motivo de estudar-se tanto cálculo e álgebra.
_ É ai que você se engana. Contestava Alex em um dos dias em que Roger reclamava. Vou mostrar-lhe um pequeno exemplo da importância dos cálculos dentro de nossa área. Você já ouviu falar do diagrama de Hertzsprung-Russell?
_ Hertz? Tem alguma coisa a ver com freqüência? Chutou Roger.
_ Claro que não seu idiota, nunca tente mostrar que sabe alguma coisa se de fato não sabe, entendeu? Tem a ver com o tamanho e a luminosidade das estrelas. Vou tentar te explicar.
O que se seguiram foram aproximadamente duas horas de explicações. Alex mostrava os cálculos com uma propriedade fantástica. Roger escutava simplesmente atônito e a partir deste momento se apaixonou pelo curso como um todo. Conseguira unir, enfim, a necessidade da teoria à realização do sonho por conhecimento. O tempo passou mais rápido a partir de então e logo chegou a formatura da turma de Alex. Claro, Roger foi o primeiro convidado.
O espanto da turma foi estupendo quando anunciaram a menção honrosa ao aluno que obteve as maiores notas entre os formandos.
_ Alex Baptista! Conclamou o mestre de cerimônias.
Os aplausos surgiram tímidos entre as expressões de espanto de todos os colegas. E o que mais impressionou foi o anúncio feito pelo reitor da universidade de que, até então, nenhum aluno havia conseguido nota máxima em todas as disciplinas cursadas. O aluno Alex Baptista foi o primeiro.
Alex foi requisitado, pela excelência com a qual se graduou, por diversas universidades internacionais e escolheu aquela que lhe proporcionaria maior proximidade com o European Southern Observatory – ESO, no Chile.
Roger continuou seus estudos e era reconhecido pelos colegas, com exceção de Igor, como o aluno mais completo da turma. Não recebeu o prêmio por suas notas pois esta era realmente a meta absoluta de Igor que, mesmo sem a compreensão total do que estudava, decorava imensas pilhas de livros e, através disso conseguiu a premiação tão sonhada.
_ Sou mesmo o melhor. Sussurrou ao ouvido de Roger enquanto se levantava para receber o prêmio. Conseguiu, por deste feito, uma bolsa completa em cosmologia na Universidade da Califórnia.
Roger também graduou-se com louvor e seguiu com o mestrado e doutorado em astrofísica e pós doutorado em física nuclear direcionada ao comportamento das partículas elementares ao nível de microcosmo.
Convidado a desenvolver suas pesquisas no Conselho Europeu para Pesquisa Nuclear - CERN, localizado nos arredores de Genebra, Suíça, dedicou os dez primeiros anos de sua carreira na tentativa de reproduzir os efeitos dos ventos solares sobre a atmosfera terrestre através da combinação exata entre prótons, elétrons e neutrinos em aceleradores de partículas.
Logo que foi para o CERN conheceu Jaqueline Ramos, uma espanhola de olhos negros escondidos sob seus óculos e de cabelos castanhos e lisos que insistia em ostentar amarrados, como se quisesse, propositadamente esconder sua beleza. Foi certamente pela mente criativa e pela inteligência emocional de Jaqueline que Roger se apaixonou. Logo dividiram os créditos de uma pesquisa inovadora e não demorou para que dividissem também a mesma cama.
Depois de mais de dez anos de trabalho exaustivo, a sugestão de Jaque soou como música para seus ouvidos:
_ Tanto tempo trancados dentro daquele laboratório acelerando partículas e tentando imitar a natureza e nunca fomos conhecer de perto o original. Por que não comemorar nosso décimo ano juntos sob a aurora boreal verdadeira?
_ Você realmente seria capaz de me dar este presente? Perguntou Roger entusiasmado, enquanto caminhava em direção ao notebook para pesquisar o local de maior probabilidade de assistirem ao fenômeno mais fantástico da atmosfera terrestre.
O anúncio do hotel, garantindo oitenta por cento de possibilidade de assistir ao espetáculo boreal em uma estadia de apenas três dias e a posição estratégica de Fairbanks, Alaska, era uma combinação ao menos tentadora. Chegaram na data sugerida pelo gerente do Hotel.
A expectativa do esplendor verde amarelado que iluminava o céu do Alaska suplantava o frio intenso daquela noite. Era a primeira noite de Roger e Jaque em Fairbanks e a expectativa, claro, era monstruosa. Permaneceram com o grupo de turistas às margens do Rio Chena por toda a noite e, após o raiar do sol, retiraram-se decepcionados pois a aurora não se mostrou.
_ Bem, eles não disseram cem por cento. Além disso, ainda temos mais duas noites. Comentou Roger esperançoso. Voltaram na noite seguinte e o drama se repetiu.
Na terceira noite mais uma decepção. Nada de aurora boreal. O fato incomodava não só os turistas, mas principalmente os donos dos hotéis. O que havia acontecido nas últimas noites não era comum. Por isso, estenderam gratuitamente a estadia por mais uma noite.
_ É hoje, tenho certeza! Dessa vez Roger torceu apenas consigo mesmo.
Já se passava das quatro da manhã e as esperanças já estavam se congelando juntamente com as mãos dos espectadores quando a voz de um monitor bradou: “Vejam, começou”.
Foi quando todos olharam para o alto e viram o início de um espetáculo deslumbrante. Pequenos filamentos de um vermelho intenso começaram a surgir no céu como se alguém delicadamente pincelasse uma obra de arte sobre uma aquarela infinita.
Em poucos minutos o céu encontrava-se tomado por aqueles filamentos púrpuros. Era de fato um espetáculo da natureza.
Jaqueline notou uma expressão preocupada nos olhos de Roger.
_ O que houve? Você parece decepcionado. Não era o que você esperava?
_ É fantástico. Verdadeiramente lindo. Mais ainda do que eu esperava.
_ E o que o preocupa então?
_ Era para ser esverdeada, e não completamente púrpura assim. Há sem dúvidas algo errado. As colisões deveriam deixar os elétrons excitados e o retorno ao estado normal deveria emitir um fóton com ondas de comprimento correspondente à luz esverdeada.
_ Por favor, deixe disso, pelo menos aqui você deveria relaxar um pouco, esquecer tanta teoria e aproveitar o espetáculo. Sugeriu Jaqueline e foi o que fizeram.
Depois de duas horas de deslumbramento estavam de volta ao hotel e começavam a arrumar as malas para o retorno quando bateram na porta do chalé que ocupavam. Era um dos funcionários do hotel.
_ Acabamos de receber um aviso de tempestade de neve. Todos os serviços serão interrompidos provisoriamente e todos os vôos foram cancelados.
_ Mas tempestades de neve não são comuns nesta época do ano. Afirmou Jaqueline, como se quisesse na verdade esclarecimentos.
_ A senhora tem razão. Na verdade há uma série de acontecimentos que não são comuns e que estão ocorrendo nos últimos dias, não somente em Fairbanks, mas em todo o mundo. Vocês não têm acompanhado os noticiários?
De fato combinaram que não iriam sequer abrir os e-mails enquanto estivessem em Fairbanks e ficariam desligados do mundo naqueles dias.
_ Meu Deus! Está acontecendo!
Jaqueline virou-se para dentro do quarto ao ouvir a expressão de Roger e viu que ele já estava com o notebook aberto sobre a escrivaninha do quarto.
_ O que está acontecendo?
_ O começo do fim!
_ O que? Fale logo! Você está me assustando.
_ Veja, os noticiários estão informando queda de temperatura em todo o globo terrestre, não somente nos pólos, mas também em toda zona tropical.
_ E o que isso quer dizer? Pare de me assustar, diga logo.
_ O sol está morrendo! É por isso que a aurora estava púrpura ao invés de esverdeada.
Embora Jaqueline insistisse, Roger calou-se enquanto tentava uma conexão de voz e imagem com o CERN. Conseguiu na terceira tentativa.
_ Onde você se meteu, estávamos todos desesperados à sua procura. Foram estas as palavras amigáveis de bom dia que o diretor do conselho proferiu ao ver Roger on-line.
_ É que.
_ Não interessa, preciso de vocês imediatamente aqui.
_ Impossível senhor, os aeroportos estão bloqueados. Informou Roger.
_ Me passe a localização que mandarei buscá-los. As forças armadas estão a nossa disposição e trarão vocês até aqui.
Em menos de duas horas um helicóptero da força aérea americana pousava próximo ao hotel. E, em menos de seis horas estavam na sala de reunião do CERN.
_ Roger, houve uma mudança radical no comportamento das emissões de massas coronais nos últimos cinco dias. Conseguimos detectar e medir com precisão todas as mudanças, porém não sabemos o que pode ter causado este comportamento. Dizia o diretor.
_ Preciso de todos os dados e pelo menos um dia para analisá-los.
_ Os dados já estão em seu terminal e você tem cinco horas para voltar a esta sala com uma explicação.
Cinco horas e meia depois, entraram novamente na sala de reuniões onde eram ansiosamente esperados. Um silêncio quase mórbido ocupou a sala quando Roger anunciou que os dados preliminares eram extremamente pessimistas.
_ Todas as sondas detectaram diminuição da velocidade dos ventos solares, indicando redução efetiva da intensidade das explosões. Comparei as ejeções às projetadas pelo ciclo de solar de Schwabe e não há nenhuma correspondência, ou seja, trata-se de um evento totalmente novo e sem precedentes, comparável somente com um período de calmaria do sol que durou setenta anos e ficou conhecido como Maunder Minimum, uma mini era do gelo. Detectamos ainda um aumento constante de átomos de carbono nas ejeções de massa coronal o que indica perda de massa real do sol acima do comum e explica a aurora boreal púrpura que presenciamos.
_ Roger, por favor, tente ser mais objetivo. Suplicou o diretor.
_ Bem, baseado nos dados disponíveis eu diria que nosso sol está se transformando em uma gigante vermelha.
_ E o que isso que dizer exatamente? Quem perguntava agora era Jaqueline, que não estava familiarizada com os termos astronômicos.
_ Que houve uma inversão na fusão nuclear. A reação no núcleo do sol transforma quatro prótons de hidrogênio numa partícula alfa ou núcleo de hélio, liberando energia. A equação de Einstein, E=mc2, explica como isso ocorre. A ínfima diferença de massa que existe entre quatro núcleos de hidrogênio e um núcleo de hélio se transforma nessa enorme quantidade de energia. O que parece estar ocorrendo agora é uma diminuição da fusão nuclear e, na tentativa de compensar essa redução, os átomos de hélio passam a reagir entre si, proporcionando o aparecimento de átomos de carbono o que explicaria a maior quantidade deste elemento detectada pelas sondas.
_ E quais seriam as conseqüências? Perguntou o diretor.
_ A destruição de nosso planeta e de outros do sistema solar. Porém, há algo que não se encaixa. As reações deveriam estar aumentando a temperatura da estrela, e não foi isso que detectamos. Ou seja, sei com certeza o que está acontecendo a nível de reações nucleares, porém não posso explicar com precisão o comportamento dessas reações.
_ E há alguém que possa? Perguntou o diretor.
_ Se há alguém no mundo que possa esclarecer com o que estamos lidando é Alex Baptista. Astrônomo que, embora praticamente indigente, é quem mais conhece do comportamento de gigantes vermelhas.
Na manhã seguinte, Alex já estava no CERN e, após o abraço caloroso do amigo, perguntou:
_ Está acontecendo, não está?
_ Todos os dados indicam que sim. Respondeu Roger.
_ Eu tentei avisar mas ninguém me deu ouvidos, continuaram me chamando de louco. Esbravejou Alex.
_ Mas avisar como, seria impossível prever o que está acontecendo.
_ Precisamente sim, mas certamente haveria alguma conseqüência da destruição do arsenal nuclear mundial, principalmente da forma como foi feita.
De fato, há alguns anos atrás, com a queda dos últimos ditadores, os pacifistas passaram a insistir na eliminação completa dos arsenais nucleares mundiais. Afinal, as nações que detinham as maiores quantidades de ogivas eram exatamente aquelas que lideravam a nova ordem mundial. Não suportando as pressões, todas as nações decidiram destruir seus arsenais atômicos.
Em função do risco, Igor Meirelles, sim, ele mesmo, que agora era então o astrônomo chefe da comissão intercontinental para destruição de armas nucleares, definiu que todas as ogivas fossem direcionadas conjuntamente ao sol onde seriam destruídas sem nenhum perigo ao nosso planeta. Como era de seu costume, não consultou nenhum especialista em reações atômicas e as conseqüências não foram totalmente projetadas.
_ Quando soube da insensatez daquele seu colega idiota eu encaminhei um estudo completo à ONU que foi totalmente ignorado. Lamentava Alex.
_ E, no estudo, você projetava os atuais efeitos, como o resfriamento ao invés do aquecimento.
_ Na verdade o que está ocorrendo é uma reação, por enquanto, a nível de coroa solar. O doutor Igor não levou em consideração que praticamente todas as ogivas nucleares em estoque no mundo eram dispositivos de fissão e não de fusão.
_ E o que isso pode ter interferido? Perguntou Roger.
_ O que acontece quando explodimos um artefato nuclear de fissão? Perguntou Alex, procurando direcionar o raciocínio de Roger.
_ Os núcleos atômicos de urânio ou plutônio são desintegrados em elementos mais leves, neutrôns principalmente, que bombardeiam outros núcleos que também se desintegram produzindo outros nêutrons e assim sucessivamente em uma reação sequencial. Neste momento Roger começou a entender onde o amigo queria chegar.
_ E é exatamente isto que está acontecendo neste momento na coroa solar. As ogivas nucleares de fissão, ao explodirem conjuntamente em sua extremidade, desencadearam uma reação sequencial e crescente que vem desintegrando os átomos de hélio. Em resumo, conseguimos reproduzir artificialmente, de fora para dentro, o processo de formação de uma gigante vermelha, o que, digamos de passagem, é fantástico, não fosse estar adiantado uns cinco bilhões de anos.
_ Isso não é hora para brincadeiras Doutor Alex. Interrompeu o diretor. Precisamos saber o que ocorrerá daqui para frente.
_ Bem, enquanto a reação estiver a nível de coroa solar, a formação de átomos pesados funcionará como um filtro bloqueador de luz e radiação. Assim a tendência de resfriamento continuará por um período ainda indeterminado, provocando uma nova era do gelo. Com a chegada das reações no núcleo, é muito provável que haverá um aumento gradativo de temperatura e de tamanho do sol. A expansão deverá ocorrer até as imediações de Júpiter, exterminando tudo que estiver no caminho, inclusive a terra.
_ Quer dizer que seremos destruídos? Perguntou Jaqueline, espantada.
_ Seríamos de qualquer forma daqui a cinco bilhões de anos, o Doutor Igor só nos fez o favor de adiantar o processo. Ironizou Alex.
Roger mantinha-se quieto e pensativo, como se todas aquelas reações continuassem dentro de seu cérebro.
_ Acho que podemos reverter este quadro. Sussurou Roger para o diretor, pedindo mais algumas horas de prazo.
Depois de algumas horas, pediu para que fossem convocados, em vídeo conferência, os principais líderes mundiais.
Quando voltou para a sala de reuniões o mundo o aguardava. Direcionou suas palavras ao presidente da Assembléia Geral da ONU.
_ Senhor presidente, como todos sabem a situação é extremamente grave. Porém pode haver uma possibilidade que precisa ser considerada. Todos ouviram as explicações do doutor Alex Baptista que mostrou que a destruição das ogivas nucleares de fissão foram responsáveis por desencadear reações indesejáveis na coroa solar. Contudo, pelos meus conhecimentos em partículas nucleares e sub-nucleares, acredito que o desencadeamento de uma reação inversa no mesmo ponto onde iniciou-se a primeira, provocaria uma retomada sequencial da reação de fusão nuclear. Há, porém, um grande problema. O doutor Alex calcula que a reação de fissão pode chegar ao núcleo do sol em menos de dois meses. Considerando que qualquer projétil lançado em direção ao sol levaria pelo menos quarenta dias para atingir a coroa solar, teríamos menos de vinte dias para construir bombas de fusão nuclear o que seria impossível. Assim, a resposta para a pergunta que farei agora poderá salvar nosso planeta. Há ainda, em qualquer país que seja, alguma ogiva nuclear de fusão que não foi destruída?
Percebia-se uma barulho de conversas pararelas entre os líderes. O presidente da assembléia solicitou que fossem interrompidas todas as conexões externas e que faria um pronunciamento oficial o mais rápido possível.
Em menos de meia hora havia um comunicado oficial da ONU sobre a mesa do diretor do CERN, informando que pelo menos treze ogivas nuleares de hidrogênio já encontravam-se a sua disposição.
Era estranho, mas aquela informação parecia não ter causado surpresa. Era como se, no fundo, todos soubessem que o desarmamento mundial nunca havia saido do discurso político.
Feitos os preparativos necessários, as ogivas foram lançadas sete dias após o pronunciamento da ONU. Restava ao mundo aguardar esperançoso pelo resultado das novas explosões nucleares...
Fairbanks, Alaska, outubro de 2042.
_ Sabe que, até agora não consigo acreditar que o mundo foi salvo pela falta de palavra de seus líderes. Dizia desdenhosa Jaqueline, com a cabeça encostada no peito de Roger, na madrugada fria às margens do Rio Chena.
_ Nunca foi tão bom saber que não podemos confiar neles. Completou Roger.
E os dois sorriram enquanto apreciavam o espetáculo verde azulado da aurora boreal que coloria o céu estrelado de Fairbanks.



2° Lugar
Alnitak
Roberto Corrêa da Silva
Pedro Leopoldo/ MG

Alnitak I

Quebrando o silêncio quase absoluto do lugar, somente aquele leve e suave zumbido, como uma verdadeira droga sonífera sonora, vindo de longe, sabe-se lá o quê, sabe-se lá porque, sabe-se lá de onde. Parecia um pequeno motor, uma turbina talvez, algo que girava constantemente: uma maquininha fazendo funcionar alguma coisa. Estava deitando, ou levitando, sobre uma espécie de cama, que podia ser também uma grande poltrona, bastante confortável e aconchegante, e a torpeza do corpo denunciava um agradável estado de repouso. Talvez estivesse dormindo, sonhando, delirando. Uma estranha e benfazeja sensação de inconsciência, mas não de todo, melhor dizer de semiconsciência, pois permanecia um certo sentido de prontidão, de plantão, em alerta geral, tomando conta de tudo e procurando, incessante e inutilmente, até onde a vista alcançava, referenciais familiares naquele absurdo ambiente.

Olhando bem, aquilo até que parecia com uma cabine de avião, mas, com certeza, absolutamente, não era, de jeito nenhum! Um certo desconcertante, desnorteante e arrepiante sentimento, que brotava gelidamente do estomago, alardeava alarmantemente que a coisa era muito mais do que um simples Boeing. Algumas luzinhas aqui e ali, alguns botões lá e cá, era só o que poderia ser tomado, remotamente, como equipamentos de um jato comercial. Mas certas inscrições, parecendo letrinhas ou números – se é que realmente eram isso –, não guardavam qualquer semelhança com nenhum idioma conhecido sobre a face da Terra, em todos os tempos, desde que o homem primitivo se flagrou pichando cavernas. Além disso, êle pôde facilmente verificar, como prova definitiva de que estava num local totalmente inusitado, que aquele salão era demasiadamente circular e avantajado (mais ou menos 50 metros de diâmetro) para ser uma cabine de avião. E pensava assim porque agora tinha plena certeza que aquilo voava, a grande velocidade e à noite, como acusavam as estrelinhas que passavam riscando o céu que se via pelas longas janelas horizontais localizadas nas laterais. Teve tempo ainda de perceber que talvez não viajasse sozinho, pois havia muitas outras proltronas-camas como a dele espalhadas pelo recinto. Só não conseguiu distinguir se estavam ocupadas ou não, porque todas tinham a mesma cobertura, algo como um semicilindro metálico e transparente, cheio de um tipo de gás azul claro, brilhante e espesso, que não permitia a visão do conteúdo. Não teve tempo, ou capacidade, de ver mais nada.

De repente um gigantesco turbilhão de luz e cores, girando numa imensa espiral frenética e alucinante, se precipitando no infinito a uma velocidade vertiginosa – essa foi a única e pobre descrição que êle pôde dedicar ao fenômeno –, tomou conta de tudo. Melhor dizendo, se tornou tudo. Naquele momento êle teve a nítida impressão de que o que vira e sentira até então era uma mera introdução, uma simples preparação, um estágio de transição, para algo muito mais importante que viria logo em seguida. Era como se, antes, êle estivesse esperando na sala de embarque de um aeroporto e, agora, sim, estava realmente dentro do avião e levantando vôo.

Êle gostava muito de caminhar noite adentro pelos largos gramados defronte a sua casa de campo, e aquela noite estava perfeita. 23:30 horas, sem lua no céu nem luzes em terra, firmamento limpíssimo e estrelado, lindíssimo, sem uma nuvenzinha sequer atrapalhando o cenário. Saturno, Órion, Júpiter, Canis Major, Columba, Lepus, Pyxis, Puppis, Vela, Carina, Crux, Musca, Centaurus, Vênus, Circinus, Lupus. Dava pra identificar e contemplar perfeitamente os principais viajantes que cruzavam a Via Láctea, naquele momento, de sudeste para noroeste. Nessas horas deixava-se levar, entregava-se, era tragado, absorvido, absorto, pelo esplendor do cosmos e só conseguia tentar pensar em duas coisas: no infinito espacial e no eterno temporal, seus dois grandes mistérios insondáveis e insolúveis. Como é que pode? Espaço e Tempo sem fim! Infinitos! Eternos! Mas logo êle desistia de tentar pensar nisso (talvez pra não endoidar de vez) e ficava lá só divagando, contemplando e saboreando aquela beleza toda.
Repentinamente, no meio daquela noite calma, cerca de 01:30 horas, um grande estrondo, um grande clarão, um raio, um relâmpago, um trovão – mas, como?! Sem uma nuvem no céu! Nem ventando estava! Quem viu de longe disse que parecia uma grande bola de luz, alaranjada, amarelada, de vez em quando avermelhava; veio riscando o céu, desapareceu, depois apareceu do outro lado e sumiu no horizonte. Dias mais tarde, análises por triangulação, baseadas nos testemunhos de diversas pessoas que presenciaram o fenômeno de diferentes pontos de observação, identificaram o local do suposto desaparecimento da coisa como sendo um ponto sobre a propriedade rural dele, desse nosso amigo amante das estrelas, o qual vinha sendo dado como desaparecido desde a ocorrência do tal evento. Desapareceu junto com o desaparecimento!

Família desorientada, desesperada, há muito já pensavam em seqüestro, lógico, mas nada de contato, de pedido de resgate ou coisa assim. E certa noite êle reapareceu, no mesmo lugar, do mesmo jeito, com a mesma roupa, com a cara mais limpa do mundo, levemente assustado, é verdade, mas não pelo que teria acontecido com êle, mas, sim, pelo assombro que via na cara dos outros. Acontece que pelo calendário comum de todo mundo completava-se exatamente 93 noites e dias que êle estava sumido, sendo que para êle parecia ter transcorrido apenas algumas horas. Era como se êle estivesse saído para dar umas voltas por ali mesmo, pelas redondezas, e agora estivesse voltando para casa, só isso.

Só que êle não se lembrava muito bem de onde estivera, ou do que esteve fazendo, nessas suas poucas horas de sumiço. Mas, lá no fundo, no intimo, no recanto mais profundo do seu ser, sabia que algo muito importante tinha acontecido: algo infinitamente maior do que aquele pequeno lapso de tempo que êle julgava ter ficado ausente. Foi dormir, estava exausto demais para conversar sobre isso, ou qualquer outra coisa, agora. Deitado na cama, naquele doce interlúdio entre o primeiro sono e o sono profundo, começou a recordar-se vivamente de alguma coisa que seguramente experimentara horas antes. Levantou-se num sobressalto, assustado, trêmulo, quase apavorado, correu pro notebook colocado em cima da mesa. Um sentido de urgência muito grande se instalou em sua mente. De alguma forma misteriosa sabia que seu tempo restante de vida era muito curto – devido ao acelerado processo de degeneração física e, principalmente, neurológica que o acometia, como ônus das violentas transições biológicas de estado, ocorridas ao longo da viagem no espaço-tempo. Precisava começar a escrever sua experiência rapidamente. Começou por onde ia lembrando, por impulso, por espasmos, pelos meios:

As luas gêmeas quase tocavam a linha reta do horizonte, a maior seguindo a menor, e bem no meio, no zênite, daquele imenso céu amarelado já dominava o incrível sol deles, azulado, azul-piscina. Perguntei novamente para quem me acompanhava, meu espécie-de-guia, o nome do planeta. Nome muito estranho, não consigo lembrar. Mas êle repetiu para mim os dois nomes do sol, o nome dado por êles e o nome dado por nós: Alnitak (*). Esse eu conhecia muito bem. Aliás, foi o único nome que reconheci...

(*) Uma das três estrelas do Cinturão de Órion, também conhecidas popularmente como as “Três Marias”.


Alnitak II

As duas luas gêmeas quase tocavam a linha reta do horizonte, a maior seguindo a menor, e bem no meio, no zênite, daquele imenso céu amarelado já dominava o incrível sol deles, azulado, azul-piscina. Perguntei novamente para o que me acompanhava, meu espécie-de-guia, o nome do planeta. Nome muito estranho, não consigo lembrar. Mas êle repetiu para mim os dois nomes do sol, o nome dado por êles e o nome dado por nós: Alnitak. Esse eu conhecia muito bem. Aliás, foi o único nome que reconheci durante toda essa viagem. Estávamos num gigantesco planalto sem fim, numa cidade muito bonita e agradável, moderníssima, de arquitetura predial e traçado urbano bastante arrojados, suspeitamente parecida com a capital brasileira, Brasília – diferindo desta apenas pelos imensos e densos bosques e florestas, que a cercavam por todos os lados. Quase nenhuma circulação de gente e veículos nas grandes vias terrestres que, com suas áreas verdes, espelhos dágua e estranhos pátios, pistas e praças, deveriam servir mesmo era como áreas de lazer e práticas esportivas. O movimento maior estava nos céus, apinhado daqueles pequenos veículos aéreos, parecendo microônibus, deslocando-se silenciosa e ordenadamente de um prédio para outro e para outros locais fora da cidade – provavelmente para outras cidades.
Num de nossos freqüentes encontros entre visitantes e nativos, que eram assim como um tipo de reunião-palestra-curso, fiquei conhecendo um pouco mais, ou o suficiente, a respeito de certos assuntos sobre os quais guardava imensa curiosidade: as estruturas e as instituições sociais, políticas, econômicas, religiosas e espirituais daquele povo. Quanto ao social-político-econômico, o espécie-de-chefe do meu espécie-de-guia esclareceu que ao longo de sua tri-cento-milenar história eles haviam experimentado de tudo: impérios, teocracias, ditaduras, monarquias, reinos, anarquias, sacro-impérios, repúblicas, parlamentarismos, oligarquias, democracias, etc, em todos os matizes e variantes possíveis, socialistas, capitalistas, comunistas, absolutistas, relativistas, etc, que estas entidades organizacionais pudessem proporcionar. Nada deu certo, muito pelo contrario. Somente nos últimos cinco mil anos, em que o planeta está, enfim, unificado e pacificado como uma única nação, sob um único governo global, é que as coisas começaram a dar certo. O sistema atual é algo parecido como uma democracia-social-liberal parlamentarista, meio capitalista, meio comunista, com liberdade individual total, isto é, ninguém é obrigado ou coagido há viver sob o establishment. Por exemplo, um anarquista, um racista, ou um fundamentalista religioso, pode perfeitamente procurar, ou até fundar, um feudo, um grupo, um partido, que corresponda às suas aspirações político-sociais; e se porventura um dia estes constituírem força suficiente para desbancar o regime posto, então, nesse dia, e somente nesse dia, se verá o que fazer.
Quanto ao que chamamos de instituições religiosas, nada. Quanto ao que chamamos de instituições espirituais, tudo. Já tiveram seus Cristos, seus Budas, seus Maomés, seus Moisés, e nenhuma instituição ou estrutura religiosa derivada, ou fundada, em nome destes, deu certo ou foi produtiva. Apenas os aspectos, preceitos, ou fundamentos estritamente filosóficos e espirituais destas entidades sobreviveram e foram positivamente produtivos para a vida política, social e econômica, individual ou coletiva, das pessoas. Porém, da mesma forma que ocorre no sistema político-sócio-econômico, a liberdade de culto e expressão religiosos é plena e é direito garantido a quem quer que seja, individual ou coletivamente.
Certo dia fomos visitar os dois satélites naturais, as duas luas gêmeas, muito parecidas com a nossa, que estavam quase em uma singular conjunção cósmica. De volta ao planeta, pudemos observar um fantástico eclipse lunar parcial, de uma lua sobre outra.
Mas, a grande surpresa, o ponto culminante, a revelação maior, o fato mais importante, de toda essa jornada, ficou para o final, quando eu já estava retornando, ou sendo devolvido, para casa. Pois foi só então que ganhei coragem suficiente e resolvi perguntar ao meu espécie-de-guia – talvez um dia lembre seu impronunciável nome – o que eles conheciam e, principalmente, quais eram seus interesses a respeito da minha Terra. E êle me revelou a surpreendente e estonteante história, que resumidamente é a seguinte: Há cerca de 30.000 anos (deles) atrás, ou 15.000 dos nossos, quando eles iniciaram as suas explorações espaciais de longo alcance, de um sistema estelar para outro, com naves de grande porte (mais de 20 tripulantes), decidiram, obviamente, começar pelos sistemas mais próximos, entre os quais este cuja estrela-mãe chamamos de Sol. Aqui chegando, descobriram com grande entusiasmo e satisfação que o terceiro planeta desse sistema, que denominamos Terra, era incrivelmente parecido com o seu planeta de origem. E possuía todas as condições básicas e necessárias para o estabelecimento de vida inteligente; perfeito para seres como eles – o nível da força de gravidade, a fertilidade do solo, a composição atmosférica e, principalmente, a grande abundancia de água, foram os fatores determinantes; aliás, o nome que eles deram para a Terra, traduzido para nós, é justamente este: Água.
Como a vida animal encontrava-se num estágio muito primitivo, incipiente, e ainda não se distinguia por aqui nenhum ser inteligente que pudesse se tornar dominante – os macacos de maior porte, apesar de serem de espécie similar à deles, levariam ainda alguns milhões de anos para conseguir – eles resolveram fundar aqui a sua primeira colônia interestelar em larga escala (interplanetárias, em pequena escala, já tinham cinco colônias, utilizadas basicamente para pesquisas cientificas e exploração mineral, localizadas no próprio sistema de Alnitak). Praticamente toda a tripulação, cerca de 60 pessoas, metade homens, metade mulheres, se candidatou a colono, e foi instalada aqui com todo o conhecimento cientifico e capacidade tecnológica suficientes para desenvolver uma grande civilização. Perguntei, então, qual era o motivo das visitas, do retorno, deles à Terra (ou Água). Resposta: a atual situação política, social, econômica e ambiental da colônia não andava nada bem, caminhavam rapidamente rumo à autodestruição, o que não era nada bom. Precisavam observar, investigar as causas; sentiam-se na obrigação, no dever, de tentar corrigir, de procurar ajudar; talvez até intervir diretamente, o que seria uma ação extremamente não recomendável e perigosa.
Muito atordoado e desconfiado solicitei ao meu espécie-de-guia, de um modo um tanto audacioso e desafiador, provas concretas e irrefutáveis de toda aquela história maluca que êle contava, ao que, paciente como sempre e quase ironicamente, êle logo atendeu. Informou-me que “provas concretas e irrefutáveis” poderíamos facilmente obter quando resolvêssemos explorar, investigar e decifrar, seriamente, à luz dos nossos ancestrais conhecimentos filosóficos e espirituais (mas nunca “religiosamente”, ou por simples fé), o que está “escrito”, por “dentro” e por “fora”, nas pedras dos mais antigos monumentos arquitetônicos do planeta – citou, especial e enigmaticamente, os conjuntos das pirâmides de Gizé, no Egito, e de Teotihuacan, no México. Dito isso, apontou para uma grande tela que fez surgir à nossa frente, na qual apareceram três desenhos, ou fotos espaciais, lado a lado: a formação das três pirâmides de Gizé, a formação das três pirâmides de Teotihuacan e a formação das três estrelas do que chamamos de Cinturão de Órion (as nossas tão conhecidas Alnitak, Alnilam e Mintaka).
Então foi a vez dele perguntar, depois de me pedir para observar e analisar atentamente as disposições nas três figuras – absolutamente semelhantes entre si com relação aos tamanhos, proporções, posições, alinhamentos e inclinações relativas dos seus três objetos –, se eu achava que aquilo era mero acaso ou coincidência.
Alnitak III

O espécie-de-guia apontou, então, para uma grande tela que fez surgir à nossa frente, na qual apareceram três desenhos, ou fotos espaciais, lado a lado: a formação das três pirâmides de Gizé, a formação das três pirâmides de Teotihuacan e a formação das três estrelas do que chamamos de Cinturão de Órion (as nossas tão conhecidas Alnitak, Alnilam e Mintaka).
Ai foi a vez dele perguntar, depois de me pedir para observar e analisar atentamente as disposições nas três figuras – absolutamente semelhantes entre si com relação aos tamanhos, proporções, posições, alinhamentos e inclinações relativas dos seus três objetos –, se eu achava que aquilo era mero acaso ou coincidência.
Depois desse astronômico, derradeiro e definitivo choque existencial, comecei a me sentir um pouco sufocado, meio sem ar, coração acelerado, peito apertado, pés sem chão, cabeça rodando a mil, suando frio, e sai correndo para fora, buscando ar livre, procurando o sol.
Lá fora, resgatando o equilíbrio, recuperando as faculdades básicas, respirando melhor e sentindo o agradável calor do sol – o sol deles! – na pele, eu já começava a aceitar que tudo aquilo não poderia jamais ser mero acaso ou coincidência; e que só podia ser mesmo coisa feita, arranjada, programada, planejada, projetada e construída, por eles.
Sentindo, apreciando e bendizendo o efeito calmante e revigorante da luz e do calor daquele sol, comecei, então, a pensar, a ponderar – numa luta desesperada para tentar restabelecer meus abalados sentidos físicos de orientação espacial – que o quê eu via ali, naquele exato momento, naquele céu, era muito mais que um simples sol (se é que se pode dizer que um sol é uma coisa simples), era também uma tal estrela que os antigos astrônomos da minha terra chamaram de Alnitak; a qual, à noite, alinhada com outras duas irmãs suas, participa do famoso conjunto das Três Marias!
Era muito estranho, e até um pouco engraçado, ficar imaginando as pessoas da Terra olhando para o céu à noite, procurando as Três Marias, e eu lá, coladinho nelas, quase sendo devorado e incinerado por uma delas.
Daí, conseqüentemente, e pelo que se pode chamar de uma simples questão de lógica associativa recíproca, ou reversa, passei a imaginar como seria ver, na noite deles, o sol da minha Terra como uma simples estrela no céu. E, para poder ver isso, a curiosidade foi tão grande quanto à ansiedade para que a noite chegasse logo.
Quando a noite, enfim, chegou, o meu espécie-de-guia nos mostrou um quadrante relativamente vazio no céu, onde se realçavam nitidamente três estrelas bastante brilhantes e isoladas. Elas estavam posicionadas há cerca de dez graus entre si, em relação ao nosso ponto de visão, e formavam um triangulo isósceles perfeito, com a base praticamente alinhada com o equador celeste e o vértice oposto apontando exatamente para o norte geográfico do planeta. As duas estrelas da base, dos vértices leste e oeste, eram mais ou menos do mesmo tamanho aparente e da mesma magnitude, mas a estrela do vértice norte era ligeiramente maior e mais brilhante que as outras duas.
Um outro guia, talvez um astrônomo, que nos acompanhava, fez, então, três precisos comentários e explicações sobre esse triangulo estelar: O primeiro, relativamente mais extenso e técnico, dizendo que as relações entre as medidas dos ângulos internos e as proporções dos lados e das alturas desse triangulo eram exatamente (e êle fez questão de ressaltar esse exatamente) as mesmas das nossas pirâmides de Gizé, na Terra (mais uma “transferência” de arquitetura cósmica?!) O segundo, um pouco menos técnico ou numérico, falando que aquela formação de estrelas sempre foi, e é, um importante referencial celeste para eles, por ser visível praticamente durante todo ano e por sempre apontar para a mesma direção no céu – assim como o Cruzeiro do Sul ou a Estrela Polar, para nós na Terra. E o terceiro, curto e simples: A estrela do vértice norte é o seu sol.
Para eles, um simples, mas muito importante, ponto apontando o norte; para nós, uma informação totalmente desnorteante, desconcertante.
Alguém, não me lembro se um dos nossos ou um deles, comentou alguma coisa sobre a importância do triangulo, dizendo que essa peculiar forma, assim como o círculo e o quadrado, contém algumas das relações geométricas e matemáticas mais fundamentais do nosso universo. Não consegui prestar muita atenção a isso, não porque já soubesse plenamente disso, mas, sim, porque, depois da revelação dessa incrível bússola estelar triangular deles, eu não conseguia parar de pensar no porquê o triangulo tem tanta importância e destaque na maioria das culturas e filosofias esotéricas, místicas ou religiosas da Terra – seria isso mais um caso de “transferência”, dessa vez do tipo sócio-cultural?!
Saí dessas minhas elucubrações, chamado pela voz do tal do meu espécie-de-guia. Êle não falava quase nada... Aliás, ali ninguém falava praticamente nada, nem precisava, pois a eloqüência da comunicação visual era mais que suficiente. Mas, lá, de pé debaixo daquele incrível céu noturno, êle pronunciou aquilo que, para os seus padrões de oratória, talvez tenha sido o seu maior e mais belo discurso:
A minha estrela, no seu céu, é um mero acessório, é uma pequena parte do cinturão que amarra as vestes de um imaginário ser cósmico. Mas, a sua estrela, no meu céu, é o principal, permanente e eterno referencial, é aquela que sempre norteou e guiou os caminhos da minha civilização.


3° Lugar
Além da era do Micro ship
Márcia Regina De Araujo Duarte
Rio de Janeiro/RJ


ALÉM DA ERA DO MICRO CHIP


O Planeta Terra está mais lindo, mais limpo, mais ecologicamente correto. Tudo funciona através de sistemas holográficos que acessamos mentalmente, bastando nos concentrar no que realmente queremos.
Não são mais necessários os micro chips. Utilizamos programas mentais instalados em nosso cérebro, via indução hipnótica. As malditas senhas finalmente deixaram de existir. Podemos ser reconhecidos em nossa identidade, via íris, voz ou digital de um dedo qualquer.
Cartão de débito e crédito? Coisa do passado! Ao fazer compras, basta ativar o sistema interno de memória, que nunca falha, e transmitir via holográfica os dados de nossa conta de créditos. Não utilizamos mais dinheiro nem talões de cheques. E o principal: Nossos créditos sempre são suficientes para adquirirmos todo o necessário, pois só pagamos na verdade, pelo supérfluo. Moradia, alimentação, educação, transporte, lazer e saúde são considerados necessidades básicas, e por isso são gratuitos.
Os aposentados, por exemplo, não pagam absolutamente nada. Vivem a vida intensamente, fazendo tudo que desejam e esteja ao seu dispor. E vivem muito mais tempo, pois as condições de saúde são intensamente melhores. Não temos horário fixo de trabalho. Isso é determinado por cada um, a cada dia, pois tudo acontece de acordo com nossas necessidades e capacidades internas. Há inteira responsabilidade em saber que o trabalho precisa ser realizado, e não existe mais aquela coisa de um se encostar no outro para trabalhar menos. Tudo é prazer! Não se trabalha para sobreviver ou obter dinheiro que nos permitirá ter isso ou aquilo. Trabalhamos por realização interna e emoção em ver o mundo evoluir.
E, como na maior parte do tempo, utilizamos o transporte astral e comunicação holográfica, o processo de estar aqui e ali é praticamente imediato. Não gastamos mais aquelas eternas horas presos em engarrafamentos diários. Sobra muito mais tempo para a família e o lazer, altamente necessário para manter ínfimo, o nível de Stress.
Os Geógrafos e outros profissionais de atividades afins conseguiram um método de controle natural, sem agressão à natureza, que faz com que maremotos, terremotos, tufões, furacões, vulcões, ciclones e etc, não atinjam mais a sociedade.
A vida parece plena e harmônica. Não somos mais a medida do quanto podemos gastar. Nossas profissões são escolhidas por puro prazer em realizar. Todos têm acesso a qualquer curso que desejarem. E não há filas de espera, pois o sistema de aprendizagem escolar também é realizado via holográfica. Não precisamos mais ir à escola. A escola está em nossa memória, com suas bibliotecas, acervos, monitores, laboratórios experimentais, etc.
A alimentação é totalmente natural, sem a utilização de químicas e agrotóxicos. Todos são bem alimentados.
Devido ao nível de conscientização que adquirimos, não existem mais orfanatos e asilos. A morte ainda existe, por certo, e quando acontece de alguém ficar sozinho porque os membros de sua família já se foram, ele pode ser encaminhado a residir em um condomínio com toda a infraestrutura caso já seja adulto. Se for criança ou adolescente, será enviado ao convívio de uma família, selecionada via harmonização de características comuns tipo dons, profissão, gostos, etc.
Não há mais a diferença entre os meus filhos e os filhos dos outros. Todos somos irmãos de alma e tratados igualmente, com o respeito que cabe a qualquer ser humano independente de raça, cor, nível social, etc.
Como a sociedade é harmoniosa e todos têm direito a todos os processos básicos, não existe mais a marginalidade como consequência de um mal estar cultural. Apenas defeitos de caráter podem trazer à tona tal comportamento, mas o número disso é mínimo. Defeitos físicos congênitos e predisposição a certas doenças, são corrigidos ainda na gestação, sem risco para o feto nem para a mãe, pois as técnicas de reconhecimento de DNA são avançadas.
A Psicologia como profissão de clínica acontece em noventa e nove por cento dos casos a título de busca do autoconhecimento. Desequilíbrios como Stress, Ansiedade, Pânico, Depressão e outros, fazem parte apenas do passado. O Ser Humano descobriu que o maior alimento e o melhor remédio são o amor e o sorriso gratuitos.
Há perfeita união entre as práticas milenares de medicina e as técnicas de última geração. Pouco se fica doente, mas quando acontece, a forma de tratamento é surpreendentemente tranquila. Cirurgias não precisam mais de cortes e pontos para cicatrizar. Pequenas agulhas são inseridas no órgão problemático e faz-se então um processo de transferência de informação celular, que cura quase que imediatamente. Não se utiliza aquele soro por via venosa, que deixa o paciente preso à cama. A anestesia não é química, mas sim por hipnose e relaxamento. E em função de todo este desenvolvimento o ser humano sobrevive muito mais tempo. O comum já é chegar aos cento e cinquenta anos. Morrer de velhice é o natural.
A prática da Arte é comum em quase todas as famílias. Os dons existentes em cada Ser são sempre valorizados desde cedo.
Os oceanos, mares, lagos e baías foram totalmente despoluídos. Florestas, replantadas. A camada de Ozônio restaurada com técnicas de última geração. Viagens interestrelares, são comuns passeios que se faz aos fins de semana. Temos contato com seres de outras galáxias e todos se unem em busca de um conhecimento cada vez maior.
Animais em extinção? Isso é termo fora de nosso dicionário. Há sim o controle de crescimento e habitat natural de certos animais, para que não se transformem em pragas destruidoras. Existem vacinas para quase todos os tipos de vírus e medicamento para qualquer infecção bacteriana. E a medicação não causa os terríveis efeitos colaterais orgânicos e sintomatológicos como acontecia antigamente.
Alergia é processo ultrapassado. Não existe mais poluição! Podemos respirar livremente ar saudável em todos os ambientes.
O Ser Humano é livre! O desenvolvimento é sempre para a paz! Esta é a Terra que todos precisamos! Em 2050, há o mundo melhor que tanto sonhávamos no passado.
As crianças brincam livres pelas calçadas, sem perigos de atropelamento, pois o transporte é aéreo. Assaltos e sequestros ficaram na memória antiga de um tempo que não volta mais.
O Ser Humano voltou a respeitar sua Mãe-Natureza. E ela lhe apraz no que há de melhor em si. Vários mundos. Uma só família. Um único Deus de mãos dadas conosco, brincando numa roda de ciranda alegre e descontraída.
Este foi o sonho que tive na última noite. Acordei assustada em minha cama, ainda me sentindo a flutuar. Olhei o calendário a fim de constatar a data do dia, pois que o tal sonho, de tanto parecer real, quase me confundiu.
Era verdade! Estava em 2050. Pensei em levantar e olhar o mundo pela janela, mas não foi preciso. Minha mente holográfica despertou e a vida abriu-se para mim. O céu azul límpido, o canto dos pássaros, o jardim florido intensamente colorido...
Com sorriso no rosto, pensei: - Que bom. Por um momento achei que ainda estava em 2009 e tudo isso não passasse de um sonho. Ufa! Por fim, nós vencemos. O Ser Humano finalmente se conscientizou que o Planeta Terra é sua única e maravilhosa casa, e entendeu que não basta apenas cuidar de suas próprias moradias. Há que se pagar um eterno aluguel à natureza, que nos mantém vivos. Pagamento este, que não se faz somente com moeda, mas principalmente, com amor.



Menção Honrosa
Dissertação sobre um Juiz
Suzana Dulce Correa Fagundes
Rio de Janeiro/RJ


Dissertação sobre um juiz

Era pouco demais a parcela de paz da qual ele podia gozar. Ele, um juiz de paz.
De manhã, quando abria os olhos, já havia permanecido horas com os olhos fechados, sem ter tido coragem de abri-los. Antes de dormir, todo cuidado era pouco para serrar muito bem as cortinas, para que, no dia seguinte, nenhuma fresta de luz ou de sol pudesse passar e o fizesse acordar. Era a vida o primeiro despertar para a realidade. Era aquele sentir o corpo sobre o colchão, sob os lençóis. Era o quarto de banho a lhe esperar, e seu barbear que lhe permitiriam adentrar a sala do júri todos os dias do ano.
O cheiro do café e do pão no forno, os passos da empregada na cozinha não o deixavam, até ali, fazer nenhum julgamento. Mas, era quando abria o jornal, mesmo indo direto às colunas do lazer, do cinema, do teatro, da música, aí sim, já alguns artigos o faziam avaliar e julgar: bom ou mau, sim e não, bonito ou feio...
Depois, inexoravelmente, o restante do jornal, com o seu obituário, o horóscopo, a política, a economia. Aí, sim, fazia o juiz a grande economia de pensamentos e de palavras, de laudas futuras, pois achava que nada mais valia a pena pensar, ali, diante do jornal ou da vida.
Não conseguiria ele sonhar nenhum sonho, distante que fosse, no Marrocos ou coisa assim, ou na infância tão somente. Achava que sonhar era a verdadeira loucura.
Era pouco o que respirava por dia. Uma respiração sôfrega que nunca se agrandava, porque emoção ou sobressalto não o surpreenderia. Seu coração continuaria a bater do mesmo jeito, no mesmo ritmo.
Interrompe a leitura para pensar se acaso a lavanderia já havia entregue seus ternos, testemunhas oculares, casimira que, junto com ele, se sentaria nos bancos de juízes, ali pateticamente e ficariam a julgar petições, acusações e absolvições.
Para de pensar na lavanderia para finalmente dizer o bom-dia à antiga empregada e pedir-lhe que não o espere para o almoço.
Era pouco o que lhe era dado viver para si. Pensava em como a Lei lhe tomava quase as 24 horas do seu dia, julgando, julgando.
Quando olhava uma vitrine, via a sala do júri com seus fantasmas, com todas aquelas palavras proferidas. Via a si próprio, ali, ouvindo advogados, testemunhas, acusação, defesa, e se imaginava viajando longe... Sua cabeça devaneava naquele sonho vivo, onde tudo era o tempo passado, morto. Tudo parecia apenas a leitura de um texto teatral, um ensaio geral, nada mais que isto.
Os bancos de madeira, ligeiramente ensebados, cheiravam a óleo de peroba. Demoraria um pouco, ainda, para o óleo entranhar na madeira e dar-lhe um aspecto fosco.
O juiz estava ali, no alto, porque era necessário para ele uma certa altura, para se fazer superior. Como Adolf Hitler, que montara sua sala de recepções de forma que ficasse sempre mais alto que seus interlocutores.
Muitos anos se passaram na vida do juiz: os da faculdade de Direito, os da adolescência, os da infância, o tempo de sua vida intrauterina. Agora, era a decadência física, o cabelo caindo, as responsabilidades, aquela cadeira dura de madeira.
No fundo do peito, felinos arranhando o esôfago, a laringe, a boca do estômago, partes do ser humano que ele era. Aquele homem sem história, porque sua vida não tem um enredo peculiar.
Agora, era apenas o sustento de uma vida sem consolo. Ainda o sonho, pequenas ambições corroendo suas entranhas. Uma rotina seria muito pouco para um homem em plena sociedade de consumo, em meio à propaganda, ao mundo agora globalizado. No entanto, era o que tinha.
Estudara muito. O Código Penal, outros códigos, para depois recitá-los naquele banco de juiz, sintetizados nas palavras finais:
— Culpado!
— Inocente!
Gostava de falar antes de proferir qualquer sentença: justificativas ou palavras consoladoras. Mas elas já não lhe pertenciam, vinham não sabia de onde. Espontâneas como equações que se resolviam matematicamente dentro dele.
E o juiz as proferia com prazer. Ignorando de onde vinham aquelas citações, nomes ou informações. Ali estava ele, deixando que seu raciocínio verbal, lingüístico, antecipasse a sentença. Muitas vezes ele teve a certeza de que era uma voz como a de Deus que, através dele, falava. Sabia, também, que a visita do cliente ao seu advogado definia a sentença, e que a justiça se fazia sozinha. O juiz é mera peça de um jogo, do jogo da vida. Pressentia que aquela encenação, cercada por todos os lados de lambris de madeira, chão e teto, deixaria de existir com o passar do tempo. Seria como a forca ou a guilhotina: coisas do passado. Tinha a certeza, sobretudo, de que o ser humano não alcançaria a paz, enquanto necessitasse de juízes. Não enquanto fosse este um mundo de juízes e de prostitutas.
O telefone raramente tocava em sua mesa de café. Nunca ninguém teria mesmo nada a lhe dizer logo de manhã, porque ele não havia deixado nenhum assunto pendente no dia anterior. Além disso, não estava mantendo relacionamento humano algum naqueles dias, nem tinha filhos.
Quase sempre, regozijava-se por não ter sido nenhum daqueles juízes em Nuremberg. Tampouco, o juiz que proferiu as sentenças finais.
Naquela manhã, voltava ao seu coração o remorso por ter nascido, simplesmente. Por ter sobrevivido, por estar ali com a xícara de café na mão, envolto na fumaça que pairava no ar. Só pensava em como seria bom estar longe dali, nos Alpes, talvez, ou em alguma fazenda com o mesmo café fumegante nas mãos.
Para exercer o seu papel de juiz, teve que ter doze fôlegos, ser o mais teatral possível, mesmo que, para isso, tivesse que tirar seus disfarces de todos os baús. E ele não pensava em indumentárias. Pensava na mímica facial, mental e emocional, nos gestos que teria que fazer para os rituais diários na tribuna.
Voltava-lhe, à mente, o julgamento de Nuremberg. Quantos juízes! Quanta atrocidade por causa de uma só culpa, de uma só guerra!
Aquele era mais um dia em que ele vestiria a toga preta, com pequenos detalhes brancos. A cada júri, mandava passá-la com a intenção de que os pecados dela fossem dissipados com o calor do ferro, para que esse manto absorvesse uma nova negritude que a impregnaria, outra vez, com fatos narrados e acontecidos.
Depois da toga, a pele. Os tecidos epidérmicos. Veias passando, artérias cheias de sangue, alguma gordura, os ossos. Sob a penugem dos braços, das pernas, dos cabelos da cabeça, ali estava o seu corpo: maior protagonista e vítima da sua morte certa, mas, sobretudo, a maior prisão que experimentara, verdadeira prisão perpétua, o seu corredor da morte.
O juiz era culto e informado. E ali estava, naquela manhã em sua casa, em profundo silêncio. Nenhuma ópera poderia tomar lugar ali naqueles instantes. Estavam, também, os minutos preciosos do seu silêncio. Na verdade, o barulho mental dentro de sua cabeça era ensurdecedor. Do lado de fora, a sua quietude parecia solidão, talvez abandono de si mesmo. Era curioso, mas o juiz achava que ninguém tinha o direito de julgar outro ser humano seja por sua aparência física ou mental, seja por seus depoimentos, ou por nada. Ninguém, nem os últimos dos mortais, poderia ter a pretensão de julgar quem quer que fosse, nem ele próprio. Mas o juiz, tinha que fazê-lo, não sem antes olhar para dentro de si e adentrar rios, mares, seu sal, seu pó.
Ele era uma célula única, individual e solitária. Tentava descondicionar a mente, libertar-se. Não lhe agradava ser igual ou parecido a nada. Achava difícil pertencer a qualquer agremiação. Portanto, nunca poderia ser budista ou evangélico. E também achava desconcertante ser associado a algo.
Mas o juiz era um ser social, embora não se sociabilizasse. Via, há anos, no apartamento em frente, pessoas reunidas para um chá, talvez. De onde aquela amizade poderia ser, pensava.
O juiz acabou tendo uma vida formal. Por demais. Por isso, muitas vezes queria romper com o preestabelecido. Tinha sede do insólito, do inusitado. Na verdade, queria para si um mundo fantástico como acontece nos palcos do teatro ou no cinema. Quantas vezes teve vontade de causar um escândalo, como ter um ataque de nervos na tribuna, numa represália a tudo o que fosse lugar-comum! Quando era jovem, mas já um juiz de respeito, quis entrar a cavalo no fórum, como cowboy, atirando para cima.
De tanto ver a injustiça, os ladrões, os párias da sociedade pensava:
— Que massa é esta? Afinal, do que é feito o tecido da sociedade?
Ele sabia que esse tecido era útil como uma rede de pescar, belo como um adamascado com fios de ouro, volátil como o mais fino véu das mil e uma noites. Sabia também que estava cheio de furos, por onde escoavam provisões preciosas, valores, consciências e vidas. Verdadeiros buracos no cosmos. E que era uma sociedade assim que elegia juízes, para que estes julgassem o impossível: uma onda do mar, uma avalanche, água, terra, pedra, um fogaréu atiçado pelo vento...
Olhava para os jurados e sabia que muitos deles estavam absortos, evasivos, ali, naquela sala. Tinha certeza de que muitas daquelas mulheres tinham deixado a roupa branca de molho em suas casas para clarear. Conhecia, também, muitos dos pensamentos daqueles homens, como o time de futebol na disputa de um campeonato.
Sabia que, pelo menos uma daquelas mulheres do júri, ainda há pouco, havia jurado fidelidade ao marido. Mas como, pensava, ela poderia cumpri-lo se o amante a esperava logo depois daquele julgamento? (No fundo, o juiz torcia pelos amantes).
Seria tudo isso imaginação pura? Ele tinha muito tempo para avaliar os seus pensamentos, afinal, os julgamentos tinham virado rotina. Era quase tudo mecânico, repetitivo. Só mudavam, nos processos, nomes, situações, localidades. Ele já sabia que o veredicto era a palavra final de uma voz incontrolável, que gritava dentro dele. Chame-se isso de fatalidade, de voz de Deus ou da justiça dos homens.
Desejava que todos os veredictos fossem não mais que palavras passando como nuvens na sua mente azul cerúleo. Desejava que essas palavras finais nem a ele pertencessem, fossem como hóspedes, como pessoas que chegam e que partem em seguida.
Às vezes, achava que os seus dias de vida já chegaram ao fim. Assim, sem doença alguma, a não ser alguma neurose, passando desapercebida aos olhos alheios. Mais um pouco, e talvez morresse. Indagava-se se acaso os momentos felizes compensaram todo o sofrimento da condição humana na qual ele sempre viveu.
Em meio a tantas conjecturas, achava que era a solidão o seu bem mais precioso. Não fosse essa fiel companheira, vestida de mulher, que o acompanhara na alegria e na tristeza, que bailara com ele nos palcos dos cheiros, dos tatos, das percepções, como tudo teria sido?
Na hora do desespero, o juiz pensava no abstracionismo. Em todo tipo de arte abstrata. No poder de sua síntese, no seu minimalismo. Pensava na vanguarda, no novo. Pensava nas formas sinuosas das esculturas e dos objetos, na tridimensionalidade que via nos museus e nas galerias. Para ele, a arte era outra dimensão. Através dela, o juiz se via numa esteira para pedestres em alguma estação espacial.
Era bom para ele ver o passado ficando para traz e o presente dando lugar ao futuro. Nessa esteira, o juiz já não se sentia medíocre. Sentia-se, ao contrário, quase um deus. Um Zeus ciente da efemeridade de todas as coisas, da sua volatilidade.
Caminhando, sem tempo, sob forte chuva, o juiz queria ter o prazer do contato com a água, depois com o fogo ao pé da lareira. Queria respirar o ar da noite, sentindo o cheiro de madeira queimada, de brasas fumegantes.
Diante da noite, mais que nunca, ele sabia que, inexoravelmente, todos os dias amanhecem. Era bom varar a madrugada lendo os infindáveis processos e esperando que o dia clareasse por fim. Era como nascer, dar o primeiro grito de vida, estar em mãos maternais. E o dia era cor de anil muito claro, era fresco, coberto do orvalho que já começava a evaporar.
O juiz não queria exatamente o respeito das pessoas. Só queria mesmo era a paz sonhada. O seu bem-estar. Queria ser feliz em vida e não após a morte.
Respirava fundo, profundamente.
E achava que era feliz, afinal..


Menção Honrosa
Escriba – O Portal Secreto
Rita Bernadete Sampaio Velosa
Américo Brasiliense/SP


ESCRIBA: O PORTAL SECRETO

__Eu não sei ler. Você sabe?
__Não. Ninguém mais sabe!
__Isso não é verdade! Meu chefe sabe.
__Ele não vale. Ele é vice-presidente.
__E vive escrevendo naquele computador, que ainda tem teclado. Ele só conversa por escrito com o presidente da empresa.E eu, que sirvo o café, tenho em casa um computador bem mais avançado, que obedece aos meus comandos de voz. Não dá para entender meu chefe! Usar um computador , modelo Século XXI, de quase cem anos atrás...
__Mas vou te dizer uma coisa: não é só ele não! O meu também! Você já reparou, que só esses funcionários do alto escalão é que sabem ler e escrever?
__Meu avô ainda sabia ler, mas desde que inventaram esses novos computadores, ficou tudo diferente para nós. Meu pai ainda estudou leitura e escrita por um ano. Depois fecharam as escolas. Eu, já nasci bem depois disso...
__Verdade! Por que será que as escolas foram fechadas? E, sabe, outro dia, eu entrei de repente, na sala do meu chefe e ele estava num ” site” que não tinha som nem imagens. Era todo cheio de uns pequenos sinais. Para mim aquilo é o que eles chamam de “ escrita”. Ele estava distraído e sorria. Parecia estar se divertindo muito. Quando percebeu que eu estava observando, desligou tudo rapidamente. Cheguei em casa e tentei acessar aquele “site”, com comandos de voz, porque eu não sabia como ler aquele “ link”. Mas meu computador dizia que aquele “ site” não existia.Mas eu sei que existe! Eu vi no
computador dele. Tenho certeza!
__Aconteceu o mesmo comigo.Eu ainda fiz mais:copiei aqueles pequenos desenhos do link do computador do meu chefe, quando ele esqueceu o computador ligado, faz umas duas semanas.Depois digitei aqueles desenhos na barra de navegação.Porém, não deu certo também.Eu acho que eles têm “sites” só para quem sabe ler..De alguma forma, eles bloqueiam esses “ sites” e portais para nós. Acho que tem que usar alguma senha ou algum número de IP secreto.
__Verdade.Também acho isso!
__E devem existir escolas ainda. Como é que eles aprenderam a ler?
__Mas se existem, são secretas. Eu nunca soube de nenhuma!
__Eu não queria passar minha vida inteira servindo cafezinhos. Mas não sei como fazer para trabalhar em empregos melhores, assim como os dos nossos chefes.Eles tem de tudo:moram em casas confortáveis, comem bem, vivem viajando...É a maior mordomia!
__Também não agüento mais essa escravidão. Sem saber ler, ficamos na ignorância, totalmente dominados! Desconfio de que eles controlam o que podemos saber ou não.
__Verdade! Há meses eu venho tentando descobrir alguém para me ensinar a ler, secretamente. Depois quero ver se dou um jeito de invadir os portais deles para ver o que contêm. Eu ouvi falar que existe uma sociedade secreta que faz isso.Você já ouviu falar?
__Já! Parece que o nome é “SPPE”.
__O que significa?
__” Sociedade Protetora da Palavra Escrita” . Dizem que eles têm livros escondidos em casa, o que é muito perigoso, e que trocam esses livros entre si, para lerem. Sempre que descobrem alguém com um livro, o proprietário some para sempre.Dizem que foi isso que aconteceu com o nosso colega Lineu, que sumiu misteriosamente. Lembra dele?
__Claro! Foi o caso do Lineu que me fez começar a pensar.
__Pode bem ter sido isso mesmo! Nos últimos tempos, antes de sumir, ele andava diferente, alegre, com um brilho especial de esperança no olhar.
__Silêncio! Disfarça! O chefe vem vindo!
E foi assim, que, no futuro, a oralidade voltou a dominar a comunicação humana, repetindo um cenário de dominação total dos letrados sobre os iletrados, já bem conhecido da raça humana nos primórdios da civilização. Com uma agravante : as máquinas , instrumentos poderosos nas mãos de censores implacáveis!

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